Jesus Cristo
Capítulo 18: Como Quem Tem Autoridade


Capítulo 18

Como Quem Tem Autoridade

O relato de Mateus sobre o inestimável discurso conhecido como Sermão da Montanha termina com um comentário significativo referente ao efeito das palavras do Mestre sobre o povo: “Porquanto os ensinava como tendo autoridade; e não como os escribas.”a Uma característica notável do ministério de Cristo foi a ausência absoluta de qualquer afirmativa de autorização humana para Suas palavras ou feitos; a autoridade que Ele professava possuir era a do Pai que O enviara. Seus discursos, dirigidos a multidões ou a apenas alguns, em relativa intimidade, não continham as citações elaboradas em que tanto se compraziam os mestres da época. Sua frase “Eu, porém, vos digo” substituiu a invocação de autoridade e superou qualquer amontoado possível de mandamentos ou citações de precedentes. Nisso Suas palavras diferiam de maneira essencial das eruditas elocuções dos escribas, fariseus e rabis. Durante todo o Seu ministério, manifestou poder e autoridade inerentes sobre a matéria e as forças da natureza, sobre homens e demônios, sobre vida e morte. É nosso propósito agora considerar um certo número de exemplos nos quais o poder do Senhor foi demonstrado em diversas obras poderosas.

A Cura do Servo do Centuriãob

Do monte das Beatitudes, Jesus voltou a Capernaum, se diretamente ou por um caminho mais longo, marcado por outras obras de poder e misericórdia, não é de grande importância. Havia, na época, uma guarnição romana na cidade. Um oficial militar, centurião ou chefe de cem homens, estava estacionado ali. Esse oficial tinha um servo a quem muito estimava e que se encontrava enfermo, “quase à morte”. O centurião tinha fé que Cristo podia curá-lo, e solicitou a intercessão dos anciãos judeus junto ao Mestre, para implorar o favor desejado. Esses anciãos pediram com veemência a Jesus, recomendando o homem pelo seu valor, pois, embora gentio, amava o povo de Israel e havia construído, com seus próprios meios, uma sinagoga para eles na cidade. Jesus foi com os anciãos, mas o enfermo, provavelmente tomando conhecimento da aproximação do pequeno grupo, apressou-se a enviar outros emissários, para dizer que não se considerava digno de receber Jesus em seu lar, senso esse de indignidade que o impedira de apresentar seu pedido pessoalmente.c “Porém”, dizia a mensagem de súplica, “dize uma palavra e o meu criado sarará”. Podemos comparar o conceito que esse homem tinha do poder de Cristo com o do nobre da mesma cidade, que solicitou a Jesus que corresse em pessoa para o lado de seu filho moribundo.d

O raciocínio do centurião parece ter sido o seguinte: Ele próprio era um homem de autoridade, embora sob a direção de oficiais superiores. Dava ordens aos seus subordinados, as quais eram obedecidas. Não achava necessário estar presente à execução de suas instruções. Naturalmente, uma pessoa que possuía tanto poder quanto Jesus poderia ordenar e ser obedecida. Ademais, o homem talvez tivesse sabido da maravilhosa recuperação do jovem moribundo, filho do nobre, realizada por Jesus a muitas milhas do leito do enfermo. Que a confiança do centurião, sua crença e fé eram genuínas, não é passível de dúvidas, uma vez que Jesus expressamente as elogiou. O aflito foi curado. É-nos dito que Jesus se maravilhoue por ter o centurião assim manifestado a sua fé, e, voltando-se para o povo que o acompanhava, disse: “Afirmo-vos que nem mesmo em Israel achei fé como esta.” Esse comentário pode ter surpreendido a alguns de seus ouvintes; os judeus não estavam acostumados a ouvir a fé manifestada por um gentio receber tal cumprimento, pois, de acordo com o tradicionalismo da época, um gentio, mesmo que prosélito fervoroso do judaísmo, era considerado essencialmente inferior ao mais insignificante membro do povo escolhido. O comentário de nosso Senhor indicou claramente que os gentios teriam primazia no reino de Deus, se em valor superassem os demais. Referindo-nos ao relato de Mateus, encontramos este ensinamento adicional, introduzido com o costumeiro “Vos digo” — “que muitos virão do Oriente e do Ocidente, e se assentar-se-ão à mesa com Abraão, e Isaque, e Jacó, no reino dos céus. E os filhos do reino serão lançados nas trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de dentes”.f Este ensinamento, de que a supremacia de Israel pode ser atingida somente através de superioridade em retidão, é reiterado e ampliado nas lições do Senhor, como veremos.

Levantado dentre os Mortos um Jovem de Naimg

No dia seguinte ao do milagre que acabamos de considerar, Jesus dirigiu-Se à pequena cidade de Naim, e, como de costume, muitas pessoas O acompanharam. Esse dia testemunhou o,que, na estimativa humana, foi um prodígio maior do que qualquer outro realizado por Ele até então. Cristo já havia curado muitos, algumas vezes por uma palavra a enfermos presentes, e outras quando estava longe do beneficiário do seu poder; males físicos haviam sido vencidos e demônios rechaçados pelo Seu comando; mas, embora doentes às portas da morte tivessem sido salvos da sepultura, não temos qualquer registro anterior de que o Senhor tivesse ordenado à própria morte que devolvesse alguém que arrebatara.h Ao se aproximarem da cidade Jesus e Seus seguidores encontraram um cortejo fúnebre com muita gente; o filho único de uma viúva estava sendo levado à sepultura; o corpo, segundo o costume da época, era carregado em esquife aberto. Nosso Senhor olhou compadecido para a mãe em prantos, agora despojada do marido e do filho; e, sentindo em Si próprioi a dor daquela perda, disse mansamente: “Não chores.” Ele tocou a maca sobre a qual jazia o homem, e os que a carregavam pararam. Então, dirigindo-se ao morto, disse: “Mancebo, a ti te digo: Levanta-te.” E o morto ouviu a voz daquele que é Senhor de todos,j e imediatamente sentou-se e falou. Jesus, bondosamente, restituiu o jovem à sua mãe. Lemos, sem nos surpreendermos, que o medo tomou conta de todos os presentes, e que glorificaram a Deus, testificando que um grande profeta se encontrava entre eles, e que Deus visitara Seu povo. Informações deste milagre espalharam-se pela terra, chegando mesmo aos ouvidos de João Batista, que se achava confinado na prisão de Herodes. O efeito da notícia transmitida a João, a respeito desta e de outras obras extraordinárias de Cristo, requer agora nosso estudo.

A Mensagem de João Batista a Jesus

Antes mesmo que Jesus retornasse à Galiléia após o Seu batismo e os quarenta dias de solidão no deserto, João Batista foi aprisiona-do por ordem de Herodes Antipas, tetrarea da Galiléia e Peréia.k Durante os meses subseqüentes em que nosso Senhor pregou ativamente o Evangelho, ensinando o verdadeiro significado do reino, reprovando o pecado, curando os enfermos, expulsando demônios e até mesmo ressuscitando os mortos, Seu precursor, João, homem corajoso e temente a Deus, encontrava-se preso nas masmorras de Machaerus, uma das mais fortes cidadelas de Herodes.l

O tetrarca tinha alguma consideração por João, pois o tinha na conta de homem santo, tendo feito muitas coisas segundo seu conselho direto ou por influência dos seus ensinamentos gerais. Na verdade, Herodes ouvira o Batista de bom grado e aprisionara-o relutantemente, para atender às importunações de Herodias, a quem Herodes chamava de esposa sob o disfarce de um casamento ilegal. Herodias havia sido, e legalmente ainda o era, esposa de Filipe, irmão de Herodes, de quem jamais se divorciara segundo a lei; e seu pretenso casamento com Herodes Antipas era adúltero e incestuoso sob a lei judaica. O Batista destemidamente denunciara essa associação pecaminosa. Dissera a Herodes: “Não te é lícito possuir a mulher de teu irmão.” Embora Herodes possa ter, provavelmente, ignorado esta severa reprimenda, ou pelo menos deixado passar sem punição, Herodias não o perdoou. Era ela, e não o tetrarca, quem mais odiava João; ela “o odiava, querendo matá-lo”, e conseguiu induzir Herodes a mandar prendê-lo, encarcerando-o, como primeiro passo no caminho da consumação de seu plano de vingança que tinha por objetivo executar o Batista.m Além disso, Herodes temia uma revolta do povo no caso de João ser morto por sua ordem.n

Durante o longo período de seu encarceramento, João ouvira muito sobre as maravilhosas pregações e obras de Cristo, que talvez tenham sido relatadas por alguns de seus discípulos e amigos, que tinham permissão para visitá-lo.o Fora informado, especialmente, da milagrosa volta à vida do jovem de Naim;p e imediatamente comissionara dois de seus discípulos para levarem a Jesus uma mensagem indagatória,q Esses foram até a Cristo e relataram o propósito de sua visita, dizendo: “João Batista enviou-nos para Te perguntar: És tu aquele que havia de vir, ou esperamos outro?” Os mensageiros encontraram Jesus ocupado em serviços caritativos; e ao invés de lhes dar uma resposta imediata em palavras, continuou o Seu trabalho, curando naquela mesma hora muitos cegos e enfermos, e outros que se achavam possuídos por espíritos malignos. E então, voltando-se para os dois mensageiros de João, Jesus disse: “Ide, e anunciai a João as coisas que ouvis e vedes: os cegos vêem, e os coxos andam, os leprosos são limpos, e os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres é anunciado o evangelho. E bem-aventurado é aquele que se não escandalizar em mim.”

As palavras interrogativas dos discípulos de João foram respondidas com extraordinários feitos de beneficência e misericórdia. Quando a resposta foi transmitida a João, o profeta prisioneiro não pode ter deixado de se lembrar das predições de Isaías, de que por tais bênçãos e sinais milagrosos o Messias seria conhecido;r e a reprovação deve ter sido convincente, ao lembrar-se João de suas próprias referências às predições de Isaías, quando proclamara, com eloqüência apaixonada, o cumprimento das antigas profecias em sua própria missão e na daquele que era Mais Poderoso, e de quem havia prestado um testemunho pessoal.s

A sentença final da resposta de nosso Senhor a João foi o clímax da que a precedera, e uma reprovação adicional, ainda que gentil, à vaga idéia demonstrada por João, sobre a obra do Messias. “E bemaventurado é aquele que não achar em mim motivo de tropeço”, disse o Senhor. A incompreensão é o prelúdio da ofensa. Influenciados pelo modelo da concepção então corrente daquilo que o Messias deveria ser, o trabalho de Cristo deve ter parecido a muitos um fracasso; e aqueles que esperavam alguma súbita manifestação de Seu poder na derrota dos opressores de Israel e reabilitação da casa de Davi em esplendor material, tornaram-se impacientes, e depois duvidosos; mais tarde, sentiram-se ofendidos, em perigo de rebelarem-se abertamente contra seu Senhor. Cristo foi um ofensor para muitos, porque eles, não estando em harmonia com Suas palavras e obras, escandalizaram-se Nele.t

A situação do Batista deve ser corretamente considerada por todos os que pretendem colocar em julgamento seu propósito ao inquirir do Cristo: “És tu aquele que estava para vir?” João compreendia perfeitamente que seu próprio trabalho era o de preparação; assim o testificara e prestara testemunho público de que Jesus era Aquele para quem viera preparar o caminho. Com o início do ministério de Cristo, a influência de João diminuíra, e por muitos meses ele estivera trancafiado em um cárcere, impaciente com sua inatividade forçada, sem dúvida ansiando pela liberdade, e pelos gafanhotos e favos de mel do deserto. A popularidade, influência e oportunidades de Jesus aumentavam, enquanto as dele decresciam; e ele havia afirmado que tal situação era inevitável.u

Mas, abandonado na prisão, pode ter-se desesperançado, permitindo-se considerar se aquele que era Mais Poderoso o havia esquecido. Ele sabia que, se Jesus dissesse uma palavra, a masmorra de Machaerus não poderia detê-lo; não obstante, Jesus parece que o abandonara à sua sorte, que incluía não apenas o confinamento, mas outras indignidades e tortura física.v Parte do intento do Batista pode ter sido chamar a atenção de Cristo para o seu angustioso estado; e sob este ponto de vista, sua mensagem foi mais um lembrete do que uma simples indagação, baseada em dúvida real. Na verdade, temos bons motivos para deduzir que, ao enviar discípulos a fim de interrogar Jesus, o propósito de João foi, em parte, e talvez quase totalmente, confirmar nesses discípulos uma fé perene no Cristo. A tarefa que lhes foi designada colocou-os em contato direto com o Senhor, cuja supremacia eles não poderiam deixar de perceber. Tornaram-se testemunhas pessoais de seu poder e autoridade.

O comentário de Nosso Senhor sobre a mensagem de João indicou que o Batista não possuía um pleno entendimento daquilo que abrangia o reino espiritual de Deus. Após terem os emissários partido, Jesus dirigiu-Se ao povo que havia testemunhado a entrevista. Não permitiria Ele que subestimassem a importância do trabalho de João.w Lembrou-lhes a época da popularidade de João Batista, quando alguns dos presentes, e multidões de outras pessoas tinham ido ao deserto para ouvir as severas admoestações do profeta, tendo encontrado nele um carvalho firme e inflexível e não um caniço agitado pelo vento. Eles não tinham ido ver um homem em vestes finas. Aqueles que usavam roupas macias deviam ser procurados na corte do rei, não no deserto, não na masmorra onde agora se encontrava João. Eles haviam encontrado em João um profeta, sim, mais que um profeta: “E”, afirmou o Senhor, “eu vos digo que entre os nascidos de mulheres, não há maior profeta do que João Batista; mas o menor no reino de Deus é maior do que ele”.x Que necessidade há de um testemunho maior da integridade do Batista? Outros profetas haviam falado sobre a vinda do Messias, mas João o tinha visto, batizara-O, e tinha sido para Jesus o mesmo que um criado particular para o seu Senhor. Todavia, desde os dias da pregação do Batista até esse em que Cristo falou a Seus discípulos, o reino dos céus estava sendo rejeitado violentamente, e isso a despeito de todos os profetas e até mesmo a lei fundamental terem anunciado a Sua vinda, e apesar de João e Cristo terem sido abundantemente preditos.

A respeito de João, continuou o Senhor: “E, se quereis dar crédito, é este o Elias que havia de vir. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.”y É importante saber que a designação Elias, aplicada aqui por Jesus ao Batista, é um título e não um nome pessoal, e não tem qualquer afinidade com Elias, o profeta, o antigo profeta conhecido como o tesbita.z Muitos daqueles que ouviram o elogio de Jesus a João rejubilaram-se, pois tinham aceito o Batista, passando posteriormente a seguir Jesus, como do menor para o Maior, como do sacerdote para o sumo sacerdote, como do arauto para o Rei. Mas havia fariseus e homens da lei presentes, aqueles que haviam sido tão veementemente denunciados pelo Batista como geração de víboras, e que haviam rejeitado o conselho de Deus, recusando-se a atender ao chamado de arrependimento de João.a

Nesse ponto, o Mestre recorreu à analogia, para tornar Seu pensamento mais claro. Comparou a geração incrédula e insatisfeita a crianças caprichosas que brincam, sem concordar entre si. Algumas queriam simular uma cerimônia de casamento, mas, embora tocassem flauta, as outras não dançavam; substituíram-na, então, por um cortejo fúnebre e representaram a parte dos lamentadores, mas os outros não prantearam, conforme as regras do jogo. Sempre críticos, sempre céticos, censores e difamadores por natureza, surdos e empedernidos, murmuravam. João Batista estivera entre eles como os ascéticos profetas antigos, tão sóbrio quanto qualquer nazireu, recusando-se a comer com os folgazões e a beber com os festeiros, e disseram: “Tem demônio.” Agora vinha o Filho do Homem,b sem austeridade ou maneiras de ermitão, comendo e bebendo como o faria um homem normal, hospedando-se nas casas, participando das festividades de um casamento, misturando-se igualmente com publicanos e fariseus — e eles novamente murmuravam, dizendo: “Eis aí um homem comilão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores!” O Mestre explicou que tal inconsistência, tal zombaria iníqua a respeito de questões extremamente sagradas, tal oposição determinada à verdade, certamente apareceria na sua verdadeira luz, e revelaria, então, a inutilidade do conhecimento ostentado. “Mas”, disse ele, “a sabedoria é justificada por todos os seus filhos”.

Da reprovação a indivíduos incrédulos, Ele passou a regiões ingratas, e censurou as cidades nas quais havia realizado tantas obras poderosas, sem que o povo se arrependesse: “Ai de ti, Corazim ai de ti, Betsaida! porque, se em Tiro e em Sidom fossem feitos os prodígios que em vós se fizeram, há muito que se teriam arrependido, com saco e com cinza. Por isso eu vos digo que haverá menos rigor para Tiro e Sidom, no dia do juízo, do que para vós. E tu, Capernaum, que te ergues até aos céus, serás abatida até aos infernos; porque, se em Sodoma tivessem sido feitos os prodígios que em ti se operaram, teria ela permanecido até hoje. Porém eu vos digo, que haverá menos rigor no dia do juízo para os de Sodoma, do que para ti.”c

Aparentemente deprimido pela descrença do povo, Jesus procurou fortalecer-se na oração.d Com a eloqüência da alma que só encontramos na comunhão angustiada de Cristo com Seu Pai, Ele expressou Sua gratidão reverente por ter Deus conferido o testemunho da verdade aos simples e humildes, em vez de aos grandes e letrados. Embora não O compreendessem os homens, o Pai O conhecia pelo que realmente era. Voltando-Se novamente para o povo, instou-o mais uma vez a que O aceitasse, bem como ao Seu Evangelho, e o convite que fez é uma das maiores efusões de emoção espiritual jamais conhecidas pelos homens: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.”e Convidou-os a vir do trabalho pesado para o serviço prazenteiro; dos fardos quase insuportáveis das exaçóes eclesiásticas e formalismo tradicional, para a independência do verdadeiro espírito de adoração; do cativeiro para a liberdade. Mas eles recusaram-se fazê-lo. O Evangelho que lhes ofereceu era a personificação da liberdade, mas não do desregramento — impunha obediência e submissão. Mas, mesmo que fosse comparado a um jugo, o que era o Seu fardo comparado à opressão sob a qual padeciam?

Morte de João Batista

Voltando a João Batista na solidão de sua masmorra, não temos qualquer notícia sobre a maneira como recebeu e compreendeu a resposta a sua pergunta, trazida pelos mensageiros. Seu cativeiro logo deveria terminar, embora não pela reconquista da liberdade na Terra. O ódio de Herodias contra ele crescia, e logo apareceu uma oportunidade para que ela levasse a efeito suas diabólicas tramas contra sua vida.f O rei celebrava seu aniversário com uma grande festa, na qual estavam presentes nobres, capitães e os oficiais mais altos da Galiléia. Para abrilhantar a ocasião, Salomé, filha de Herodias, embora não de Herodes, dançou para os convidados. Tão encantados ficaram Herodes e seus hóspedes, que o rei ordenou à donzela que lhe pedisse o que quer que desejasse, jurando que lho daria, mesmo que fosse a metade de seu reino.

Ela retirou-se para consultar a mãe sobre o que deveria pedir, e, recebendo instruções, retornou com a espantosa exigência: “Quero que imediatamente me dês num prato a cabeça de João Batista.” O rei ficou estarrecido; seu espanto foi seguido por um sentimento de tristeza e mágoa. Entretanto, temeu o vexame que lhe acarretaria a violação do juramento que fizera em presença da corte. Assim, convocando um executor, imediatamente deu a ordem fatal; e João foi na mesma hora decapitado na prisão. O carrasco retornou, trazendo um prato com o horrível troféu da vingança da corrupta rainha. A dádiva sangrenta foi entregue a Salomé, que a carregou, em desumano triunfo até sua mãe. Discípulos de João levaram o corpo e o colocaram na tumba, transmitindo a notícia de sua morte a Jesus. Herodes perturbou-se enormemente com o assassínio que havia ordenado, e quando, mais tarde, as maravilhas realizadas por Jesus lhe foram relatadas, teve medo, e disse: “João, o que batizava, ressuscitou dos mortos, e por isso estas maravilhas operam nele.” Àqueles que discordavam, o rei, atemorizado, replicava: “Este é João, que mandei degolar: ressuscitou dos mortos.”g

Assim terminou a vida do profeta-sacerdote, o precursor direto de Cristo; assim silenciou a voz mortal daquele que clamara tão poderosamente no deserto: “Preparai o caminho do Senhor.” Muitos séculos mais tarde, sua voz foi ouvida outra vez, como a de alguém redimido e ressuscitado; e sentiu-se o toque de sua mão novamente nesta dispensação de restauração e plenitude. Em maio de 1829, um personagem ressurreto apareceu a Joseph Smith e Oliver Cowdery, apresentando-se como João, conhecido em tempos antigos como o Batista, e, impondo as mãos sobre os dois jovens, conferiu-lhes o sacerdócio de Aarão, que contém a autoridade para pregar e administrar o Evangelho do arrependimento e do batismo por imersão para remissão dos pecados.h

Na Casa de Simão, o Fariseu

“E rogou-lhe um dos fariseus que comesse com ele; e, entrando em casa do fariseu, assentou-se à mesa.”i

Pela ordem de colocação deste incidente na narrativa dos eventos feita por Lucas, parece que o mesmo pode ter ocorrido no dia da visita dos mensageiros de João. Jesus aceitou o convite do fariseu, como já aceitara convites de outras pessoas, até mesmo de publicanos e daqueles chamados de pecadores pelos rabis. A recepção que teve na casa de Simão parece ter carecido de calor, hospitalidade e atendimento de honra. A narrativa sugere uma atitude de condescendência por parte do anfitrião. Era costume da época tratar os convidados importantes com cuidadosa atenção — recebê-los com um beijo de boas-vindas, providenciar água para lavar a poeira de seus pés, e óleo para ungir os cabelos e a barba. Todas essas atenções foram omitidas por Simão. Jesus tomou Seu lugar, provavelmente em um dos divãs nos quais as pessoas se acomodavam meio sentadas e meio reclinadas, para comer.j Tal atitude fazia com que os pés da pessoa ficassem longe da mesa. Além desses fatos relativos aos costumes da época, deve-se também lembrar que as habitações não eram protegidas contra intrusões como atualmente em uso. Não era incomum na Palestina, naquele tempo, que visitantes e mesmo estranhos, geralmente homens, entrassem em uma casa na hora da refeição, observassem o que se passava, e até dirigissem a palavra aos hóspedes, sem qualquer convite.

Entre os que entraram na casa de Simão durante aquela refeição, estava uma mulher; e a presença de uma mulher, embora um tanto incomum, não constituía uma inconveniência social, não podendo, assim, ser proibida em tal hora. Mas esta mulher era uma decaída, alguém que perdera sua virtude, e tinha de suportar, como parte da pena por seus pecados, o ostracismo e o escárnio daqueles que professavam ser moralmente superiores. Aproximou-se de Jesus por trás e abaixou-se para beijar seus pés em sinal de humildade e numa homenagem respeitosa. Poderia ter sido uma das pessoas que ouviram as gentis palavras, provavelmente pronunciadas naquele mesmo dia: “Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei.” Qualquer que tenha sido o seu motivo, ela aproximou-se Dele arrependida e profundamente contrita. Ao curvar-se sobre os pés de Jesus, suas lágrimas os banharam. Aparentemente esquecida do lugar em que se encontrava e dos olhares reprovadores que seguiam os seus movimentos, soltou suas tranças e enxugou os pés do Senhor com seus cabelos. Depois, abrindo um vaso de alabastro que continha ungüento, ela os ungiu, como um escravo faria ao seu senhor. Jesus gentilmente permitiu que a mulher continuasse sem ser censurada ou interrompida no humilde serviço que prestava, inspirada por um sentimento de contrição e reverente amor.

Simão observava toda a cena. De alguma forma, ele tinha conhecimento da classe a que a mulher pertencia; e dizia a si mesmo, embora não externasse sua idéia: “Se este fora profeta, bem saberia quem e qual é a mulher que lhe tocou, pois é uma pecadora.” Jesus leu os pensamentos do homem e disse: “Simão, uma coisa tenho a dizer-te”, ao que o fariseu replicou: “Dize-a, Mestre.” Jesus continuou: “Um certo credor tinha dois devedores: um devia-lhe quinhentos dinheiros, e outro cinqüenta. E, não tendo eles com que pagar, perdoou-lhes a ambos. Dize pois: qual deles o amará mais?” Só havia uma resposta lógica, e Simão a deu, embora aparentemente com alguma hesitação ou reserva. É provável que temia comprometer-se. “Suponho”, aventurou ele, “que aquele a quem mais perdoou.” Jesus disse: “Julgaste bem”, e prosseguiu: “Vês esta mulher? Entrei em tua casa e não me deste água para os pés; esta, porém, regou os meus pés com lágrimas e os enxugou com os seus cabelos. Não me deste ósculo; ela, entretanto, desde que entrei não cessa de me beijar os pés. Não me ungiste a cabeça com óleo, mas esta com bálsamo ungiu os meus pés.”

O fariseu não podia ignorar uma observação tão direta sobre a sua omissão, deixando de realizar os ritos normais de respeito a um hóspede especialmente convidado. A lição do exemplo aplicara-se a ele, da mesma forma que a parábola de Natã provocara em Davi uma afirmação autocondenatória.k “Por isso te digo”, Jesus continuou, “que os seus muitos pecados lhe são perdoados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco é perdoado pouco ama.” E então disse à mulher as palavras de abençoado alívio: “Os teus pecados te são perdoados.” Simão e os demais presentes murmuraram intimamente: “Quem é este, que até perdoa pecados?” Compreendendo o protesto mudo, Jesus dirigiu-se novamente à mulher, e disse: “A tua fé te salvou; vai-te em paz.”

A última parte da narrativa traz-nos à mente outra feita em que Cristo concedeu remissão de pecados, e quando se opuseram alguns ouvintes, atitude essa não menos real por não ter sido expressa em palavras, suplementou seu pronunciamento autoritário com outra declaração.l

O nome da mulher que assim se aproximou de Cristo, e cujo arrependimento foi tão sincero que levou à sua alma contrita e grata a certeza da remissão, não está registrado. Não existe qualquer evidência de que ela figure em outro incidente narrado nas Escrituras. Elatem sido apontada por certos escritores como Maria da Betânia, aquela que, pouco antes de Cristo ser traído, ungiu Sua cabeça com ungüento;m mas esta suposição é totalmente infundada,n e constitui um reflexo injustificável sobre a vida pregressa de Maria, a devota e amável irmã de Marta e Lázaro. Igualmente incorreta é a tentativa feita por outros de identificar esta pecadora arrependida e perdoada com Maria Madalena, cuja vida, em período algum, foi marcada pelo pecado da impureza, tanto quanto o afirmam as Escrituras. A importância de nos precavermos contra erros sobre a identidade dessas mulheres torna aconselhável o comentário que se segue a respeito do assunto.

No capítulo que segue aquele em que estão registrados os incidentes que acabamos de considerar, Lucaso afirma que Jesus atravessou a região, visitando todas as cidades e aldeias, para pregar o Evangelho do reino e anunciar suas alegres novas. Os Doze estavam com Ele nessa viagem, e também “algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual saíram sete demônios, e Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, Suzana e muitas outras, as quais lhe prestavam assistência com os seus bens”. Referência adicional é feita a algumas dessas nobres damas, por ocasião da morte, sepultamento e ressurreição de nosso Senhor, aparecendo menção especial a Maria Madalena.p Maria Madalena, cujo segundo nome provavelmente deriva de sua cidade natal, Magdala, foi curada por Jesus de males físicos e mentais, sendo os últimos associados a espíritos malignos que a possuíam. É-nos dito que Cristo expulsou dela sete demônios,q porém mesmo uma aflição tão deplorável não constitui base para se afirmar que a mulher não fosse virtuosa ou casta.

Maria Madalena tornou-se, entre as mulheres, uma das maiores amigas de Jesus; sua devoção àquele que a curara e a quem adorava como o Cristo, era inabalável; ela permaneceu junto à cruz, enquanto outras mulheres esperavam de longe, por ocasião de Sua agonia mortal; estava entre os primeiros junto ao sepulcro na manhã da ressurreição, e foi o primeiro mortal a ver e reconhecer um ser ressuscitado — o Senhor que ela amava com todo o fervor da adoração espiritual. Afirmar que essa mulher, escolhida entre tantas outras como merecedora de tão grandes honras, havia sido uma criatura decaída, com a alma crestada pelo calor de luxúria profana, é contribuir para a perpetuação de um erro para o qual não existe escusa. E, no entanto, a falsa tradição nascida de uma hipótese antiga e injustificável de que essa nobre mulher, destacada amiga do Senhor, é a mesma que, confessando-se pecadora, lavou e ungiu-Lhe os pés na casa de Simão, o fariseu, e recebeu o benefício de ser perdoada por seu arrependimento, tão tenazmente se fixou na idéia popular através dos séculos, que o nome, Madalena, passou a ser uma designação genérica das mulheres que perdem a virtude e mais tarde se regeneram. Não estamos considerando se a misericórdia de Cristo poderia ter-se estendido a uma pecadora como Maria Madalena possui, erroneamente, a reputação de ter sido; o homem não pode medir a importância, nem penetrar a profundidade do perdão divino. E se fosse verdade que essa Maria e a pecadora arrependida, que serviu a Jesus quando Este Se assentava à mesa do fariseu, são a mesma pessoa, a questão seria respondida afirmativamente, pois aquela mulher que havia sido pecadora fora perdoada. Estamos tratando do registro escriturístico como história, e nele nada confirma a imputação realmente repulsiva, embora comum, de impureza à alma devota de Maria Madalena.

A Autoridade de Cristo Atribuída a Belzebur

Na época do ministério terreno de nosso Senhor, a cura dos cegos, surdos ou mudos era considerada como uma das maiores realizações que se poderia alcançar através da ciência médica ou tratamento espiritual; e a sujeição ou expulsão de demônios encontravase entre os feitos impossíveis ao exorcismo rabínico. As demonstrações do poder do Senhor de curar e restaurar, até mesmo em casos universalmente considerados incuráveis, resultaram na intensificação da hostilidade por parte das classes sacerdotais. E estas, representadas pelo partido fariseu, desenvolveram a ridícula e absolutamente inconsistente sugestão de que os milagres eram realizados por Jesus através do poder do príncipe dos demônios, a quem Ele estava ligado.s

Durante a Sua segunda viagem missionária pela Galiléia, percorrendo “todas as cidades e aldeias, ensinando nas sinagogas deles, e pregando o Evangelho do reino, e curando todas as enfermidades e moléstias”,t surgiu a absurda teoria de que Cristo era, Ele próprio, vítima de possessão demoníaca, e que operava pelo poder de Satanás, teoria essa que se expandiu de tal forma a tornar-se a explicação aceita pelos fariseus e os de sua classe. Jesus afastara-Se durante algum tempo dos centros mais populosos, onde era constantemente vigiado por emissários enviados de Jerusalém à Galiléia, pelas classes dirigentes, pois os fariseus conspiravam contra Ele, buscando uma desculpa e uma oportunidade para matá-Lo. Mas mesmo nas cidades menores e distritos rurais, Ele era seguido e assediado por grandes multidões, a quem administrava, aliviando tanto males físicos quanto espirituais.u

Ele instava o povo a não espalhar a Sua fama; e talvez fizesse isso porque naquele estágio de Sua obra uma ruptura pública com a hierarquia judaica poderia constituir-se em sério impedimento; ou, possivelmente, desejava dar àqueles que conspiravam contra Ele, tempo e ocasião para desenvolver sua hostilidade amarga e encher até a borda o cálice de sua iniqüidade determinada. Mateus vê nas injunções do Senhor contra a publicidade o cumprimento da profecia de Isaías de que o Messias escolhido não contenderia nem clamaria nas ruas para chamar atenção, nem usaria o Seu ilimitado poder para esmagar mesmo uma cana quebrada ou apagar o pavio fiimegante; Ele não fracassaria nem desanimaria, mas vitoriosamente exerceria um juízo justo sobre a Terra para os gentios, assim como, por implicação, para Israel.v A imagem da cana quebrada e do pavio fumegante expressa notavelmente o terno cuidado com o qual Cristo tratava até mesmo as mais fracas manifestações de fé e desejo sincero de aprender a verdade, viessem da parte de judeus ou de gentios.

Logo após Seu retorno da viagem missionária a que noş referimos, os fariseus encontraram uma desculpa para criticá-Lo, quando curou um homem que se encontrava sob a influência de um demônio, e que era cego e mudo. Essa combinação de aflições, que afetava o corpo, a mente e o espírito, foi afastada, e o homem que não enxergava e não falava ficou livre desse triplo fardo.w Diante desse triunfo sobre os poderes malignos, o povo maravilhou-se ainda mais e disse: “Não é este o filho de Davi?” — em outras palavras: Pode ser este outro senão o Cristo que vimos esperando há tanto tempo? O julgamento popular, assim expresso, enfureceu os fariseus, que disseram ao povo, já quase em adoração: “Este não expulsa os demônios senão por Belzebu, príncipe dos demônios.” Jesus recebeu a acusação malévola e respondeu a ela, não com ira, mas em termos de calmo raciocínio e sólida lógica. Estabeleceu o fundamento de Sua defesa, declarando a verdade evidente de que um reino dividido contra si mesmo não pode subsistir, mas forçosamente se despedaça. Se aquela suposição tivesse o menor fundamento de verdade, Satanás, através de Jesus, estar-se-ia opondo a Satanás. Depois, referindo-se a práticas supersticiosas e aos exorcismos da época, pelos quais alguns efeitos, classificados hoje de curas da mente, eram obtidos, Ele perguntou: “E, se eu expulso os demônios por Belzebu, por quem os expulsam então vossos filhos? Portanto eles mesmos serão os vossos juízes”. E para tornar a demonstração mais clara usando contraste, continuou: “Mas, se eu expulso os demônios pelo Espírito de Deus, logo é chegado a vós o reino de Deus”. Aceitando qualquer das proposições, e certamente uma era verdadeira, pois o fato de que Jesus expulsava demônios era conhecido em toda a Terra, sendo confirmado pelos próprios termos da acusação que agora pronunciavam contra Ele, os fariseus acusadores estavam vencidos e condenados.

Mas a ilustração prosseguiu: “Ou, como pode alguém entrar em casa do homem valente e furtar os seus bens se primeiro não manietar o valente, saqueando então a sua casa?” Cristo havia investido contra o baluarte de Satanás, enxotado seus espíritos malignos de tabernáculos humanos dos quais eles se haviam apossado injustificavelmente; como poderia tê-lo feito, se não tivesse primeiramente subjugado o mais forte, o senhor dos demônios, o próprio Satanás? E ainda, aqueles letrados ignorantes atreviam-se a dizer, diante de uma refutação tão evidente às suas próprias premissas, que os poderes de Satanás eram subjugados por meio de ação satânica. Não podia existir qualquer acordo, qualquer trégua ou armistício entre as forças contendoras de Cristo e Satanás. Sugerindo aos Seus acusadores que exercessem um autojulgamento, para que pudessem decidirse de que lado estavam, Jesus acrescentou: “Quem não é comigo, é contra mim; e quem comigo não ajunta, espalha.”

Depois, tendo completamente demonstrado e provado o absurdo da acusação de Seus opositores, Cristo falou-lhes sobre o abominável pecado de condenar o poder e a autoridade pelos quais Satanás fora vencido. Ele havia provado, baseando-se na própria proposição deles, que, tendo subjugado Satanás, Ele era a personificação do Espírito de Deus e que, por meio Dele, o reino de Deus lhes era trazido. Eles rejeitavam o Espírito de Deus, e tentavam destruir o Cristo através de Quem aquele Espírito se manifestava. Que outra blasfêmia podia ser maior do que esta? Falando como quem tem autoridade, com a introdução solene: “Portanto, eu vos digo”, ele continuou: “Todo o pecado e blasfêmia se perdoará aos homens; mas a blasfêmia contra o Espírito não será perdoada aos homens. E, se qualquer disser alguma palavra contra o Filho do Homem, ser-lheá perdoado, mas, se alguém falar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem neste século nem no futuro.”

Quem, dentre os homens, pode expressar uma advertência mais solene e terrível contra o perigo de se cometer o imperdoável pecado?x Jesus foi misericordioso ao afirmar que palavras ditas contra Ele, como homem, poderiam ser perdoadas; mas falar contra a autoridade que possuía e, particularmente, atribuir aquele poder e autoridade a Satanás, estava muito próximo de blasfêmia contra o Espírito Santo, para cujo pecado não poderia haver perdão. E, então, em termos mais fortes, que se transformaram em invectivas cortantes, Ele lhes recomendou que fossem consistentes — se admitiam que o resultado de Seu trabalho era bom, como expulsar demônios certamente o era, sendo um bom fruto — por que não reconheciam que o poder pelo qual tais resultados eram obtidos, ou em outras palavras, a própria árvore, era boa? “Ou fazei a árvore boa, e o seu fruto bom, ou fazei a árvore má, e o seu fruto mau; porque pelo fruto se conhece a árvore.” Com palavras candentes de absoluta convicção, Ele prosseguiu: “Raça de víboras, como podeis vós dizer boas coisas, sendo maus? pois do que há em abundância no coração disso fala a boca.” Pelas verdades que Ele tornara tão claras, era evidente que as palavras de Seus acusadores saíam de corações repletos de iniqüidade. Além do mais, mostravam-se ser não somente malévolas, mas tolas, infundadas e vãs, e, portanto, duplamente saturadas de pecado. Seguiu-se outra declaração autoritária: “Digo-vos que de toda palavra ociosa que os homens disserem, hão de dar conta no dia do juízo.”

Buscadores de Sinaisy

A lição do Mestre, embora reforçada por exemplos e analogias, por aplicações diretas e por franca declaração de autoridade, caiu em ouvidos praticamente surdos à verdade espiritual, e não encontrou lugar no coração já empedernido por grande estoque de maldade. Responderam à profunda sabedoria e valiosas instruções da palavra de Deus com um pedido impertinente: “Mestre, quiséramos ver de tua parte algum sinal.” Não tinham já visto sinais em profusão? Não tinham os cegos e os surdos, os mudos e os enfermos, os paralíticos e os hidrópicos, e pessoas atacadas de toda sorte de doenças, sido curados em suas casas, em suas ruas, e nas suas sinagogas? Demônios não tinham sido expulsos e suas abomináveis vozes silenciadas pela palavra Dele? E não tinham os mortos voltado à vida, e tudo isso por meio Dele, a quem agora importunavam em busca de um sinal? Desejavam algum prodígio extraordinário, para satisfazer sua curiosidade, ou talvez para proporcionar-lhes outras desculpas para agirem contra Ele — queriam sinais para desperdiçar em sua concupiscência.z Não é de admirar que Cristo tenha “suspirado profundamente em seu espírito”, quando tais exigências Lhe foram feitas.a E replicou aos escribas e fariseus que haviam demonstrado tal desatenção às Suas palavras: “Uma geraçãob má e adúltera pede um sinal; mas nenhum sinal lhe será dado senão o do profeta Jonas.”

O sinal de Jonas significava que por três dias estivera no ventre do peixe, sendo depois restituído à liberdade. Assim também o Filho do Homem seria encerrado na sepultura e depois se levantaria novamente. Esse era o único sinal que Ele lhes daria, e pelo mesmo seriam condenados. Contra eles e sua geração, os homens de Nínive erguer-se-iam em julgamento, pois estes, iníquos que eram, haviam-se arrependido pela pregação de Jonas; e agora um maior que Jonas estava entre eles.c A rainha de Sabá levantar-se-ia em julgamento contra eles, pois viera dos confins da Terra para auferir a sabedoria de Salomão; e agora um maior que Salomão se encontrava entre eles.d

Depois, retornando ao assunto dos espíritos iníquos e imundos, sobre o qual haviam espalhado a acusação de que estava ligado a Satanás, disse-lhes que, quando um demônio é expulso, tenta, após um período de solidão, retornar à casa ou corpo do qual foi expelido; mas, encontrando essa casa em ordem, agradável e limpa, depois que seu imundo ser se viu forçado a vagá-la, convoca outros espíritos, piores do que ele mesmo, que tomam conta do homem, levando-o a um estado ainda pior do que o anterior.e Neste estranho exemplo está simbolizada a condição daqueles que, depois de terem recebido a verdade, ficando livres das impuras influências do erro e do pecado, tornando-se em mente, espírito e corpo como uma casa varrida e adornada, em imaculada ordem, renunciam mais tarde ao bem, abrem sua alma aos demônios da falsidade e do engodo, e tornam-se mais corruptos que antes. “Assim”, declarou o Senhor, “acontecerá também a esta geração má.”

Embora os escribas e fariseus não estivessem convencidos, e talvez nem mesmo impressionados com Seus ensinamentos, nosso Senhor não se encontrava completamente destituído de ouvintes apreciativos. Uma mulher do grupo elevou sua voz, invocando bênção para a mãe que havia tido aquele Filho, e para os seios que O haviam amamentado. Sem rejeitar esse tributo de reverência que se aplicava tanto à mãe quanto ao Filho, Jesus respondeu: “Antes bemaventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam!”f

Cristo é Procurado por Sua Mãe e Seus Irmãosg

Enquanto Jesus estava ocupado com os escribas e fariseus, e um grande número de outras pessoas, possivelmente por volta do momento em que concluía as palavras que acabamos de considerar, avisaram-Lhe que Sua mãe e Seus irmãos estavam presentes e desejavam falar-Lhe. Em conseqüência do aglomerado de pessoas ao Seu redor, não conseguiram chegar até Ele. Usando a circunstância para demonstrar a todos o fato de que Seu trabalho tinha precedência sobre as reivindicações familiares, e assim explicando que não podia reunir-se a Seus parentes no momento, perguntou: “Quem é minha mãe? e quem são meus irmãos?” Respondendo à sua própria pergunta e expressando nessa resposta o pensamento mais profundo que existia em sua mente, disse, apontando para os discípulos: “Eis aqui minha mãe e meus irmãos; Porque, qualquer que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, e irmã e mãe.”

O incidente nos recorda a resposta que dera a Sua mãe, quando juntamente com José, O tinham encontrado no templo, após uma longa e ansiosa busca: “Por que é que me procuráveis? Não sabíeis que me convém tratar dos negócios de meu Pai?”h Desses mesmos negócios se ocupava Ele quando Sua mãe e Seus irmãos desejaram falar-Lhe, encontrando-Se no meio da multidão. Os direitos superiores da obra de Seu Pai faziam-No adiar todos os assuntos de importância menor. Não há justificativa para considerarmos essas observações como evidência de desrespeito, e muito menos de deslealdade filial e familiar. Uma devoção da mesma espécie esperava Ele dos apóstolos, que eram chamados a dedicar, sem reservas, tempo e talento ao ministério.i Não é revelado o propósito com que os familiares de Jesus O procuraram. Podemos deduzir, portanto, que o mesmo não tinha grande importância fora do círculo familar.j

Notas do Capítulo 18

  1. Os Dois Relatos do Milagre. — Em nosso comentário sobre a cura miraculosa do servo do centurião, seguimos, em grande parte, o relato mais circunstancial de Lucas. O registro de Mateus sobre a petição do oficial, mais breve, apresenta o homem indo a Jesus em pessoa, enquanto o de Lucas afirma que foram os anciãos da sinagoga local que formularam o pedido. Não há discrepância real entre os dois. Era permitido na época, como ainda o é, falar-se de alguém que faz com que algo seja realizado, como tendo-o feito ele mesmo. Pode-se corretamente afirmar que uma pessoa notificou outra, quando ela enviou a notificação por terceiros. Diz-se que um homem construiu uma casa quando na realidade outros realizaram o trabalho, embora a seu pedido. Pode-se dizer que um arquiteto construiu um prédio, quando, na verdade, ele fez o desenho e dirigiu outros, que realmente levantaram a estrutura.

  2. Jesus Admirou-Se. — Tanto Mateus quanto Lucas nos dizem que Jesus Se admirou da fé no centuriao que suplicou a cura de seu amado servo (Mateus 8:10; Lucas 7:9). Alguns têm-se perguntado como Cristo, a quem consideram como tendo sido onisciente durante a vida na carne, pode ter-se admirado com qualquer coisa. O significado da passagem é evidente no sentido de que, quando a fé do centurião Lhe foi mostrada, Ele meditou, refletiu sobre ela, provavelmente considerando o revigorante contraste entre a mesma e a ausência de fé que encontrava tão freqüentemente. De maneira semelhante, embora com mágoa em vez de alegria, é dito que: Ele Se admirou da descrença do povo (Marcos 6:6).

  3. Seqüência dos Milagres da Restauração dos Mortos. — Como afirmado e reiterado neste livro, a cronologia dos eventos do ministério de nosso Senhor, segundo o registro dos evangelistas, é incerta. A literatura existente sobre o assunto contém muita disputa e demonstra não haver qualquer aproximação de acordo entre os eruditos bíblicos. Temos registros de três ocasiões em que, pela palavra de Jesus, os mortos foram milagrosamente restituídos à vida — no caso do filho da viúva de Naim, da filha de Jairo, e de Lázaro: e existe diferença de opiniões quanto à seqüência de dois destes acontecimentos. Naturalmente, a colocação de Lázaro como o último dos três baseiase em certeza indiscutível. O Dr. Richard C. Trench, em suas eruditas e valiosas “Notes on the Miracles of our Lord”, afirma, de maneira definitiva, que a filha de Jairo foi a primeira a ser restituída à vida. O Dr. John Laidlaw em “The Miracles of our Lord”, trata primeiramente deste, entre os milagres dessa categoria, embora sem afirmar sua precedência cronológica. Muitos outros autores afirmam ser o segundo dos três. Talvez o que tenha incentivado os escritores a arranjarem os três milagres deste grupo na seqüência indicada tenha sido o desejo de apresentá-los numa ordem crescente de grandeza aparente — a restauração da jovem sendo um caso de chamar de novo à vida uma pessoa que acabara de morrer (“não bem morta” como alguns erroneamente descrevem a condição da jovem), a restauração do rapaz de Naim como a de alguém a caminho da sepultura, e a de Lázaro, como a restituição à vida de uma pessoa que se encontrava sepultada havia quatro dias. Não podemos consistentemente aceitar que estes casos tenham oferecido graus maiores ou menores de dificuldade para o poder de Cristo. Em cada caso, Sua palavra de autoridade foi suficiente para reunir o espírito e o corpo da pessoa morta. Lucas, o único que registra o milagre de Naim, coloca o evento antes daquele da filha de Jairo, com muitos incidentes entre os dois. Existe uma grande preponderância de evidências em favor da ordem aqui apresentada, (1) o jovem de Naim, (2) a filha de Jairo, e (3) Lázaro.

  4. Tetrarca. — Este título, por derivação do termo, e como era originariamente usado, aplicava-se ao governador de uma quarta parte, ou uma das quatro divisões de uma região que havia sido, anteriormente, um país só. Mais tarde passou a ser uma designação dada a qualquer governador de uma parte de um país dividido, independente do número ou extensão das frações. Herodes Antipas é, inconfundivelmente, chamado de tetrarca em Mateus 14:1; Lucas 3:1, 19; 9:7; e Atos 13:1; e é chamado de rei em Mateus 19:9; Marcos 6:14, 22, 25, 26.

  5. Machaerus. — Segundo o historiador Josefo (Antiquities XVIII, 5:2), a prisão na qual João Batista foi confinado por Herodes Antipas era a fortaleza de Machaerus.

  6. Cristo, para Muitos um Ofensor. — A parte final da mensagem de nosso Senhor a João Batista, na prisão, em resposta à pergunta do mesmo, foi: “E bem-aventurado é aquele que não achar em mim motivo de tropeço.” Podemos observar, de passagem, que o quanto haja de reprimenda ou censura nestas palavras, a lição foi dada de maneira extremamente gentil, e de forma a ser facilmente entendida. Como escreveu Deems: “Em vez de dizer ‘Ai daquele que achar em mim motivo de tropeço’, Ele coloca a questão de maneira mais suave: ‘Bem-aventurado é aquele que não achar em mim motivo de tropeço”’. Na versão inglesa da Bíblia Sagrada, a escritura aparece assim: “Bem-aventurado é aquele que não se ofender em mim.” A palavra “ofender” e seus cognatos são usados em lugar de diferentes expressões que aparecem no original grego. Assim, infrações da lei, pecados e fraquezas em geral são chamados de ofensas, e os seus executores são ofensores culpados, que merecem punição. Em certas ocasiões, até mesmo obras de retidão são consideradas como ofensas pelos iníquos. Isso acontece não porque as boas obras fossem, sob qualquer aspecto, ofensas contra a lei e o direito, mas porque os que infringem a lei se consideram ofendidos pela mesma. O delinqüente sentenciado, não arrependido e cuja mente é ainda perversa, sente-se ofendido e revoltado com a lei que o levou à justiça. Para ele, a lei é uma ofensa. Em um sentido muito significativo, Jesus Cristo é o maior ofensor da história, pois todos os que rejeitam o Seu Evangelho sentem-se ofendidos pelo mesmo. Na noite em que foi traído, Jesus disse aos apóstolos que eles se escandalizariam Nele (Mateus 26:31: ver também versículo 33). O ministério pessoal do Senhor ofendeu não somente os fariseus e oponentes sacerdotais, mas muitos dos que haviam professado crer Nele (João 6:61; comparar com 16:1). O Evangelho de Jesus Cristo é designado por Pedro como “pedra de tropeço e rocha de escândalo, para aqueles que tropeçam na palavra, sendo desobedientes” (I Pedro 2:8; comparar com as palavras de Paulo, em Romanos 9:33). Na verdade, bem-aventurado é aquele que recebe o Evangelho com alegria, e que não encontra nele causa para ofensa.

  7. A Grandeza da Missão de João Batista. — Jesus assim deu testemunho da natureza superior da missão de João Batista: “Em verdade vos digo que, entre os que de mulher têm nascido, não apareceu alguém maior do que João Batista; mas aquele que é o menor no reino dos céus é maior do que ele.” (Mateus 11:11 comparar com Lucas 7:28.) Elucidando a primeira parte desse testemunho, o profeta Joseph Smith disse, durante um discurso que proferiu no dia 24 de maio de 1843 (“History of the Churct”, na data mencionada): “Não podia ser em conseqüência dos milagres que João realizou, pois não realizou milagre algum; mas porque — Primeiro, fora-lhe confiada a divina missão de preparar o caminho diante da face do Senhor. A quem foi confiada missão semelhante, antes ou depois? A homem algum. Segundo, foi incumbido de batizar o Filho do Homem. Quem jamais realizou tal ato? Quem jamais recebeu tão grande privilégio ou glória? Quem jamais conduziu o Filho de Deus às águas do batismo, contemplando o Espírito Santo descer sobre Ele, pelo sinal de uma pomba? Ninguém. Terceiro, João, naquela ocasião, era o único administrador legal que possuía as chaves do poder que existia na Terra. As chaves, o reino, o poder, a glória tinham sido afastados dos judeus, e João, filho de Zacarias, por bênçãos divinas e decreto celeste, possuía as chaves do poder naquela época.”

    A última parte da afirmação do Senhor — “mas aquele que é o menor no reino dos céus é maior do que ele” (João), tem suscitado interpretações e comentários diferentes. O verdadeiro significado pode ser que embora o destaque de João entre os profetas fosse extraordinariamente grande, ele não havia aprendido, por ocasião do incidente em pauta, o propósito pleno da obra do Messias, e certamente teria que fazê-lo antes de ter condições para ser admitido no reino dos céus; portanto, o menor daqueles que por meio de conhecimento adquirido e obediência prestada estivessem preparados para um lugar no reino sobre o qual Jesus ensinara, era maior do que João Batista naquela ocasião. Por inspiração, aprendemos nos últimos dias que “é impossível ao homem ser salvo em ignorância” (Doutrina e Convênios 131:6), e que “A glória de Deus é inteligência, ou, em outras palavras, luz e verdade” (Doutrina e Convênios 93:36). A indagação de João Batista mostrou que na época lhe faltava conhecimento, que seus esclarecimentos eram imperfeitos e que não podia compreender toda a verdade sobre a morte preordenada e subseqüente ressurreição de Cristo como Redentor do mundo. Mas não nos devemos esquecer de que Jesus, de forma alguma, insinuou que João permaneceria em situação inferior à do menor no reino dos céus. Aumentando seu conhecimento das verdades vitais do reino, e prestando obediência a elas, certamente progrediria, tornando-se grande no reino dos céus como o era entre os profetas da Terra.

  8. João Batista, o Elias que Deveria Vir. — Nos dias de Cristo, o povo agarravase à crença tradicional de que o antigo profeta Elias retornaria ao mundo em pessoa. A respeito dessa tradição, o Commentary, de Dummelow, diz sobre Mateus 11:14: “Supunha-se que sua atividade principal (a de Elias) seria resolver questões, dúvidas e dificuldades sobre cerimônias e ritos, e que ele devolveria a Israel (1) o pote de ouro do maná, (2) o vaso contendo o óleo consagrado (3) o vaso contendo as águas da purificação, (4) a vara de Aarão, que brotara e dera fruto.” Não existia qualquer afirmação escriturística para apoiar essa crença. Que João deveria ir adiante do Messias, no espírito e poder de Elias, foi declarado pelo anjo Gabriel no seu anúncio a Zacarias (Lucas 1:17); e nosso Senhor tornou bem claro o fato de que João era o Elias predito. “Elias” é tanto um nome quanto um título. Por meio de revelação, nos tempos atuais, tivemos conhecimento da individualidade separada de Elias e Elias, o profeta, cada um deles tendo aparecido em pessoa e transmitido a profetas modernos os poderes específicos de seus respectivos ofícios (Doutrina e Convênios 110:12, 13). Soubemos que a tarefa de Elias é a da restauração (Doutrina e Convênios 27:6, 7; 76:100; 77:9, 14). No dia 10 de março de 1844, encontramos o seguinte registro (History ofthe Church), como testemunho do profeta Joseph Smith:

    “O espírito de Elias prepara o caminho para uma revelação maior de Deus, que é o Sacerdócio de Elias, ou o Sacerdócio ao qual Aarão foi ordenado. E quando Deus envia um homem ao mundo para fazer a preparação para um trabalho maior, possuindo as chaves do poder de Elias, isso tem sido denominado doutrina de Elias, desde o começo do mundo.

    A missão de João limitou-se a pregar e batizar, mas o que ele fez tinha força legal. E quando Jesus Cristo encontrava discípulos de João, Ele os batizava com fogo e com o Espírito Santo.

    Os apóstolos foram dotados de um poder maior que o de João: seu trabalho estava mais sob o poder e espírito de Elias, o profeta, do que de Elias.

    No caso de Filipe, quando esteve em Samaria, com o espírito de Elias batizou tanto homens quanto mulheres. Quando Pedro e João tiveram conhecimento disso, foram até lá, impuseram as mãos aos batizados e estes receberam o Espírito Santo. Isso mostra a diferença entre os dois poderes.

    Quando Paulo encontrou alguns discípulos, perguntou-lhes se haviam recebido o Espírito Santo. Eles disseram que não. Quem os batizou, então? Fomos batizados no batismo de João. Não, não foram batizados no batismo de João ou teriam sido batizados por João. E, então Paulo os batizou novamente, pois sabia qual era a verdadeira doutrina, e sabia assim que João não os tinha batizado. E eu estranho muito que, homens que têm lido as Escrituras do Novo Testamento, estejam tão distantes dessas coisas.

    O que desejo fixar em vossa mente é a diferença de poder nas diversas partes do Sacerdócio, de forma que, quando qualquer homem chegar até vós, dizendo: ‘Eu possuo o espírito de Elias, podereis saber se a afirmação é verdadeira ou falsa. Pois qualquer homem que possua o espírito e o poder de Elias não transcenderá os seus limites.

    João não ultrapassou seus limites, mas fielmente realizou a parte que lhe cabia: e cada porção do grande edifício deve ser preparada corretamente e designada para o lugar adequado, e é necessário sabermos quem possui as chaves do poder, e quem não as possui, para que não sejamos enganados.

    “A pessoa que possui as chaves de Elias realiza uma obra preparatória.

    Este é o Elias mencionado nos últimos dias, e eis aqui a rocha contra a qual muitos se esfacelam, pensando que esse tempo já passou, nos dias de João e Cristo. Mas o espírito de Elias me foi revelado, e eu sei que é verdadeiro. Portanto falo arrojadamente, pois sei que minha doutrina é verdadeira.”

  9. À Mesa do Fariseu. — A expressão “assentou-se à mesa”, que aparece em Lucas 7:37, e em outras passagens, é considerada por fonte autorizada como tradução incorreta; deveria ser “deitou-se” ou “reclinou-se” (vér o Comp. Dict. ofthe Bible, de Smith, sob o item “Refeições”). Que o antigo costume hebreu era sentar-se à mesa está fora de dúvida (Gên. 27:19; Juízes 19:6, I Sam. 16:11; 20:5, 18, 24; I Reis 13:20); mas o costume de reclinar-se em divas colocados ao redor da mesa parece datar de muito antes dos dias de Cristo (Amós 3:12; 6:4). Era comum na Palestina o costume romano de arranjar as mesas e divas ao longo de três lados de um quadrado, deixando o quarto lado aberto para a passagem dos criados que serviam os comensais. As mesas e divas assim dispostos constituíam o triclinium. Referindo-se ao cerimonial dos fariseus na questão da lavagem de artigos usados nas refeições, Marcos (7:4) menciona “camas”. Uma pessoa reclinada junto à mesa teria os pés em direção oposta à mesma. Assim, foi simples para a mulher contrita aproximar-se de Jesus por trás e ungirlhe os pés sem perturbar os outros participamtes da refeição.

  10. Não é Especificada a Identidade da Mulher. — A tentativa de identificar a pecadora contrita que ungiu os pés de Jesus na casa de Simão, o fariseu, com Maria da Betânia é veementemente condenada por Farrar (p 225, nota): “Aqueles que identificam esta festa na casa de Simão, o fariseu, na Galiléia, com a festa realizada muito mais tarde na casa de Simão, o leproso, em Betânia, e a unção dos pés por uma mulher da cidade, uma pecadora’, com a unção da cabeça por Maria, irmã de Marta, adotam princípios de critica tão imprudentes e arbitrários, que a sua aceitação roubaria aos Evangelhos toda a credibilidade, tornando-os quase indignos de serem estudados como narrativas verdadeiras. Quanto aos nomes Simão e Judas, que provocaram tantas identificações de pessoas e incidentes diferentes, eram eles tão comuns entre os judeus daquela época quanto José e Antônio o são entre nós hoje. Há cinco ou seis Judas e nove Simãos mencionados no Novo Testamento, e dois Judas e dois Simãos entre os apóstolos; Josefo cita mais ou menos dez Judas e vinte Simãos nos seus escritos, e deve, portanto, ter havido milhares de outros que, naquele mesmo período, eram assim chamados. O incidente (de ungir com ungüento) está perfeitamente de acordo com os costumes da época e do país, e não existe a menor improbabilidade na sua repetição sob circunstâncias diferentes. (Ecles. 9:8; Cant. 4:10; Amós 6:6.) O costume ainda existe.”

    O erudito cônego está plenamente justificado em sua veemente crítica. Entretanto, ele endossa a identidade, comumente aceita, da mulher mencionada no relato do repasto em casa de Simão, o fariseu, com Maria Madalena, embora admitindo que a base para essa afirmativa seja “uma velha tradição — que prevalece especialmente na Igreja Ocidental, e é seguida pela tradução de nossa versão inglesa” (pág. 233). Como afirmamos neste livro, não há qualquer evidência fidedigna de que Maria Madalena tenha sido contaminada pelo pecado do qual a mulher arrependida foi tão bondosamente perdoada por nosso Senhor, na casa do fariseu.

  11. .O Pecado Imperdoável. — A natureza do terrível pecado contra o Espírito Santo, sobre o qual o Senhor advertiu os fariseus que O acusavam, tentando atribuir Seu divino poder a Satanás, é mais claramente explicada, e seus resultados mais explicitamente estabelecidos em revelação moderna. A respeito daqueles que o cometem e de seu terrível destino, o Todo-Poderoso disse: — “Estes são os filhos de perdição, de quem eu digo que melhor lhes fora nunca terem nascido; pois são vasos de ira, condenados a sofrer a ira de Deus, com o diabo e seus anjos na eternidade; sobre os quais eu disse que não há perdão neste mundo nem no mundo vindouro, (…) que irão para o lago de fogo e enxofre (…), que é castigo eterno, para reinar com o diabo e seus anjos na eternidade, onde seu bicho não morre, e o fogo é inextinguível, o que é seu tormento (…) o seu fim nem seu lugar e nem o seu tormento. Nem foi revelado nem é nem será revelado ao homem, exceto àqueles que dele forem feitos participantes; contudo, Eu, o Senhor, mostro-o em visão a muitos, mas imediatamente torno a encerrá-la; portanto sem fim, sua largura, altura, profundidade e miséria eles não compreendem, nem homem algum, a não ser os que são ordenados a essa condenação.” (Doutrina e Convênios 76:31—48; ver também Hebreus 6:4—6; Livro de Mórmon, Alma 39:6.)

  12. Uma Geração Adúltera à Procura de Sinais. — A resposta de nosso Senhor aos que reclamavam um sinal, dizendo que “Uma geração má e adúltera pede um sinal” (Mateus 12:39; ver também 16:4; Marcos 8:38), só podia ser interpretada pelos judeus como reprovação extrema. Que a designação “adúltera”, de caráter descritivo, se aplicava literalmente à imoralidade comum na época, eles todos sabiam. Adam Clarke, em seu comentário sobre Mateus 12:39, diz sobre este assunto: “Existem provas conclusivas, por seus próprios escritos (dos judeus), de que na época de Nosso Senhor, o judeu era um povo essencialmente adúltero; pois nessa mesma época o rabi Jachanan ben Zacchi aboliu o julgamento pelas águas amargas do ciúme, porque eram demais os que se achavam culpados desse crime.” Para informações a respeito do julgamento daqueles acusados pelas águas amargas ver Números 5:11-31. Embora Jesus chamasse aquela geração de adúltera, não encontramos qualquer registro de que os príncipes judeus, que provocaram tal acusação exigindo um sinal, tenham ousado negar ou tentado repelir a culpa que lhes foi imputada. O pecado do adultério estava incluído entre as ofensas capitais (Deut. 22:22-25). A severidade da acusação feita por Jesus foi intensificada pelo fato de que as Escrituras mais antigas apresentavam o convênio entre Jeová e Israel como um laço de matrimônio (Isaías 54:5-7; Jeremias 3:14; 31:32; Oséias 2:19, 20), assim como também as Escrituras posteriores apresentam a Igreja como uma noiva e Cristo como o esposo (II Cor. 11:2; compare com Apoc. 21:2). Ser espiritualmente adúltero, segundo a interpretação rabínica das afirmações dos profetas, era ser falso para com o convênio pelo qual as nações judaicas clamavam ser superiores, como adoradoras de Jeová, e ser totalmente falso e réprobo. Por essa acusação, os fariseus e escribas que estavam em busca de um sinal compreenderam que Jesus os considerava piores do que os gentios idólatras. As palavras “adultério” e “idolatria” têm origens relacionadas, ambas indicando o ato da infidelidade e a busca de objetos falsos de afeição ou adoração.

  13. A Mãe e os Irmãos de Jesus. — Diversos autores sugerem que Maria e outros membros da Sua família tentaram falar com Jesus, na ocasião a que nos referimos, com a finalidade de protestar contra a energia e o zelo com que Ele desempenhava Sua missão. Na verdade, alguns foram tão longe a ponto de sugerir que Maria e Seus filhos tinham ido para restringir sua liberdade e para suster, caso o conseguissem, a maré de interesse popular, críticas e ofensas que crescia ao seu redor. Até mesmo como hipótese, esta interpretação carece totalmente de base escriturística. O propósito da visita não é mencionado. Como será mostrado em outras páginas deste livro, é fato que alguns membros da família de Maria não compreendiam a grande importância do trabalho no qual Jesus se ocupava tão assiduamente. E lemos que alguns de seus amigos (tradução marginal: “parentes”), em certa ocasião, saíram para prendê-lo e interromper suas atividades públicas, usando de força física, pois diziam: “Está fora de si” (Marcos 3 21); além disso lemos que Seus irmãos não acreditavam Nele (João 7:5). Estes fatos, entretanto, não apoiam a suposição de que as intenções de Maria e Seus filhos não fossem pacíficas. E sugerir que Maria, Sua mãe, havia esquecido tão completamente as extraordinárias cenas da anunciação angélica, a milagrosa concepção, as circunstâncias celestiais do nascimento, a sabedoria e o poder sobre-humanos exibidos durante a juventude e maturidade de Jesus, a ponto de considerar seu filho um entusiasta desequilibrado, que ela desejava confinar, é assumir responsabilidade por uma injustiça ao caráter daquela que o anjo Gabriel declarou ser bendita entre as mulheres, e altamente favorecida pelo Senhor.

    A afirmação de que os irmãos de Jesus não acreditavam Nele na ocasião a que se refere o evangelista (João 7:5) não é prova de que alguns ou mesmo todos esses irmãos não passassem a acreditar Nele mais tarde. Imediatamente após a ascensão do Senhor, Maria, mãe de Jesus, e os irmãos Deste, dedicavam-se a adoração e súplicas com os Onze e outros discípulos (Atos 1:14). O fato evidente da ressurreição de Cristo converteu muitos que até então haviam declinado de aceitá-Lo como o Filho de Deus. Paulo registra uma especial manifestação do Cristo ressurreto a Tiago (I Cor. 15:7) e o Tiago ali mencionado pode ser a mesma pessoa designada como o “irmão do Senhor” (Gál. 1:19) em outra passagem; compare-se com Mateus 13:55; Marcos 6:3. Parece que havia “irmãos do Senhor” ocupados na obra do ministério nos dias da atividade de Paulo (I Cor 9:5). A relação familiar específica existente entre nosso Senhor e Tiago, José, Simão, Judas e as irmãs mencionadas por Mateus (13:55, 56) e Marcos (6:3) tem sido causa de debates, e diversas teorias foram inventadas para fundamentar as opiniões divergentes. Assim, a hipótese Oriental ou Epifaniana afirma, a baseada apenas em suposições, que os irmãos de Jesus eram filhos de José de Nazaré com uma esposa anterior e não filhos de Maria, mãe do Senhor. A teoria do levirato presume que José de Nazaré e Clopas (este último nome, é interessante notar, é considerado o equivalente de Alfeu, ver nota de rodapé à pág. 224) eram irmãos e que, após a morte de Clopas ou Alfeu, José casou-se com a viúva de seu irmão, segundo a lei do levirato (Pág. 548). A hipótese Hieronimiana baseia-se na crença de que as pessoas citadas como irmãos e irmãs de Jesus eram filhos de Clopas (Alfeu) e Maria, irmã da mãe do Senhor e, conseqüentemente, primos de Jesus. (Ver Mateus 27:56; Marcos 15:40; João 19:25). Está além de qualquer dúvida o fato de que Jesus era considerado por aqueles que conheciam a família de José e Maria como consangüíneo próximo de outros filhos e filhas pertencentes à família. Se estes outros eram filhos de José e Maria, seriam todos mais novos que Jesus, pois, sem dúvida alguma, Ele era o primogênito de Sua mãe. A aceitação desta afinidade entre Jesus e Seus irmãos e irmãs”, mencionada pelos sinóticos, constitui o que é conhecido na literatura teológica como a opinião Helvidiana.